A crise aberta pelo Ultimato alimentou por décadas a visão da nossa História e da nossa identidade. Eduardo Lourenço ainda há poucos dias chamou a atenção para isso.
Vem desde antes do Saudosismo uma certa espectralidade, enevoada e simbólica, na imagem de Portugal, prefigurada em 1896 no Doido de Pátria de Junqueiro que vagueia post Ultimatum mas, pelo menos, "fica olhando, olhando, atónito e demente, / a epopeia d'outrora, a bíblia do passado"...
Há registos fortes e literais dessa espectralidade em Beirão quando fala de Portugal, do mar e dos outros elementos e dos fantasmas do seu cortejo de ausentes (com laivos de certo vitalismo de matriz nietzschiana), de uma Dor ontológica (ainda de matriz anteriana) e da referência a "um povo que nas trevas se suicida!" A fantasmagoria de Pessoa é mais heráldica e hierática, mais seca e mais descarnada, digamos mesmo, mais abstractamente "desumanizada".
Por outro lado, a visão histórica implícita na Mensagem é muito tradicional e esquemática, quase se limitando aos protagonismos heróicos de portugueses que Pessoa também eleva à categoria de semideuses: "A maior coisa nele [em Camões] é o não ser grande bastante para os semi-deuses que celebrou." O termo "semideuses", usado duas vezes n' Os Lusíadas (V, 88 e IX, 92) é-o por Junqueiro, na cena VIII de Pátria, e por Beirão na Lusitânia: "O Gama é um semi-deus!"
Mesmo que eu queira dar um desconto benevolente a tão inacreditável formulação, lamento mui empedernidamente não entender as categorias de sebastianista místico e de sebastianista racional . Mas reconheço não ser sensível a nenhuma espécie de ontologia ou de messianismo saudosista, sebástico, joaquimita ou místico…
Pessoa nunca compreendeu que, para engendrar uma epopeia, teria sido também necessário incluir nela uma dimensão lírica, em especial no tocante ao amor, às suas várias formas, aos seus casos concretamente considerados, à sua possível dimensão ontológica e até cósmica. Acontece com a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, a Divina Comédia, o Orlando Furioso, Os Lusíadas… Na Lusitânia, "A Monja", é um poema de amor e distância. Mas Pessoa, num artigo do Diário de Lisboa de 4.2.1924, chamava "inferior" (!!!) a quem admirasse a Lírica:
"Camões é Os Lusíadas. O lírico, em quem os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade também notável, apenas a excedência inorgânica do épico." E remata: "Em certo modo [Camões] viveu o que cantou, sendo, assim, o único épico que foi lírico ao sê-lo. Essa sua singularidade, que é uma virtude, é, como todas as virtudes, origem de vários defeitos."
Seja como for, Camões falta numa galeria que parece fazer tábua rasa do contributo do épico para a língua portuguesa e da importância desta e de Os Lusíadas na configuração de uma identidade nacional.
A omissão é intencional, mas não chega para arredar um espelhamento, como que feito "do avesso", de alguns passos da épica camoniana. É, p. ex., o caso do Mostrengo que não pode deixar de ser lido em correlação paradigmática com o Adamastor (também presente em Beirão), mas em versão empobrecida precisamente pelo escamoteamento de toda e qualquer veleidade lírico-amorosa na Mensagem. E ali, até o homem do leme não faz mais do que insistir em passar os tão camonianos "vedados términos" (Lus., V, 41). E os filhos varões de D. João I são figuras da Mensagem em evidente recorte paradigmático da "ínclita geração, altos infantes" (Lus., IV, 50) …
Sobre o que seria o seu próprio poema épico intitulado Portugal (título ainda ostentado pelo dactiloscrito da Mensagem já em tipografia), Pessoa dizia à Revista Portuguesa: "Literariamente, o passado de Portugal está no seu futuro. O infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor." Não era verdade, mesmo nesta concepção tão despojada de "semideias".
Como sou bastantemente antipessoano, talvez haja quem se surpreenda por me ouvir opinar que há na Mensagem alguns belos poemas e alguns belos versos, de par com outras coisas patentemente falhadas e desinteressantes. Mas já ninguém se espantará de me ouvir considerar aquela afirmação de que "literariamente, o passado de Portugal está no seu futuro" uma portentosa parvoíce, à maneira, para mim insuportável, de muitos paradoxos pessoanos do mesmo tipo. (Continua)
Vem desde antes do Saudosismo uma certa espectralidade, enevoada e simbólica, na imagem de Portugal, prefigurada em 1896 no Doido de Pátria de Junqueiro que vagueia post Ultimatum mas, pelo menos, "fica olhando, olhando, atónito e demente, / a epopeia d'outrora, a bíblia do passado"...
Há registos fortes e literais dessa espectralidade em Beirão quando fala de Portugal, do mar e dos outros elementos e dos fantasmas do seu cortejo de ausentes (com laivos de certo vitalismo de matriz nietzschiana), de uma Dor ontológica (ainda de matriz anteriana) e da referência a "um povo que nas trevas se suicida!" A fantasmagoria de Pessoa é mais heráldica e hierática, mais seca e mais descarnada, digamos mesmo, mais abstractamente "desumanizada".
Por outro lado, a visão histórica implícita na Mensagem é muito tradicional e esquemática, quase se limitando aos protagonismos heróicos de portugueses que Pessoa também eleva à categoria de semideuses: "A maior coisa nele [em Camões] é o não ser grande bastante para os semi-deuses que celebrou." O termo "semideuses", usado duas vezes n' Os Lusíadas (V, 88 e IX, 92) é-o por Junqueiro, na cena VIII de Pátria, e por Beirão na Lusitânia: "O Gama é um semi-deus!"
Mesmo que eu queira dar um desconto benevolente a tão inacreditável formulação, lamento mui empedernidamente não entender as categorias de sebastianista místico e de sebastianista racional . Mas reconheço não ser sensível a nenhuma espécie de ontologia ou de messianismo saudosista, sebástico, joaquimita ou místico…
Pessoa nunca compreendeu que, para engendrar uma epopeia, teria sido também necessário incluir nela uma dimensão lírica, em especial no tocante ao amor, às suas várias formas, aos seus casos concretamente considerados, à sua possível dimensão ontológica e até cósmica. Acontece com a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, a Divina Comédia, o Orlando Furioso, Os Lusíadas… Na Lusitânia, "A Monja", é um poema de amor e distância. Mas Pessoa, num artigo do Diário de Lisboa de 4.2.1924, chamava "inferior" (!!!) a quem admirasse a Lírica:
"Camões é Os Lusíadas. O lírico, em quem os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade também notável, apenas a excedência inorgânica do épico." E remata: "Em certo modo [Camões] viveu o que cantou, sendo, assim, o único épico que foi lírico ao sê-lo. Essa sua singularidade, que é uma virtude, é, como todas as virtudes, origem de vários defeitos."
Seja como for, Camões falta numa galeria que parece fazer tábua rasa do contributo do épico para a língua portuguesa e da importância desta e de Os Lusíadas na configuração de uma identidade nacional.
A omissão é intencional, mas não chega para arredar um espelhamento, como que feito "do avesso", de alguns passos da épica camoniana. É, p. ex., o caso do Mostrengo que não pode deixar de ser lido em correlação paradigmática com o Adamastor (também presente em Beirão), mas em versão empobrecida precisamente pelo escamoteamento de toda e qualquer veleidade lírico-amorosa na Mensagem. E ali, até o homem do leme não faz mais do que insistir em passar os tão camonianos "vedados términos" (Lus., V, 41). E os filhos varões de D. João I são figuras da Mensagem em evidente recorte paradigmático da "ínclita geração, altos infantes" (Lus., IV, 50) …
Sobre o que seria o seu próprio poema épico intitulado Portugal (título ainda ostentado pelo dactiloscrito da Mensagem já em tipografia), Pessoa dizia à Revista Portuguesa: "Literariamente, o passado de Portugal está no seu futuro. O infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor." Não era verdade, mesmo nesta concepção tão despojada de "semideias".
Como sou bastantemente antipessoano, talvez haja quem se surpreenda por me ouvir opinar que há na Mensagem alguns belos poemas e alguns belos versos, de par com outras coisas patentemente falhadas e desinteressantes. Mas já ninguém se espantará de me ouvir considerar aquela afirmação de que "literariamente, o passado de Portugal está no seu futuro" uma portentosa parvoíce, à maneira, para mim insuportável, de muitos paradoxos pessoanos do mesmo tipo. (Continua)
Gostei de ler estas notas sobre a Mensagem, apesar de ainda não ter abordado nas aulas, mas ajudaram-me numas informações para uma apresentação oral a Português.
ResponderEliminarQueria fazer um comentário à sua opinião de Pessoa,pelo facto de muito do que ele diz ser repleto de paradoxos. Realmente é verdade e muitas vezes não chegamos a conclusão nenhuma do que ele quis verdadeiramente dizer. Contudo, acredito que ele era demasiado avançado intelectualmente para a época em que viveu (como ele próprio chegou a afirmar) e , talvez, mesmo nesta época não o possamos compreender por ser demasiado complexo.
Quanto aquela afirmação "literariamente, o passado de Portugal está no seu futuro", eu acho que o que ele quis dizer foi que só no futuro é que poderemos falar e avaliar o passado de Portugal e o quão importante ele foi.Tal como só nos apercebemos da nossa felicidade quando a olhamos na memória de tempos passados, o passado de Portugal só poderá ser "cantado" num futuro que o saiba apreciar.