Além de toda uma série de paradoxos gratuitos, de "isto-ser-também-aquilo-podendo-afinal-ser-uma-outra-coisa-qualquer-e-o-contrário-disso", isto é, em que uma coisa acaba por perder toda a espécie de identidade ou mesmidade própria e de lógica de existir, no exacerbamento de uma dialéctica petrarquista cujos processos elementares remontam entre nós aos poetas do Cancioneiro de Resende, em Pessoa impacientam-me profundamente outras afirmações que já no tempo em que ele escrevia não tinham pés nem cabeça, como a de que Guerra Junqueiro "desalojou Camões do primeiro lugar ao publicar Pátria em 1896".
Não resisto a citar Jorge de Sena: "ainda hoje persiste, na meia-tijela intelectual, a fascinação pelo pretensiosismo filosofante de Junqueiro..."
De resto, parece haver um verdadeiro equívoco quando Pessoa vaticina o aparecimento do "Supra-Camões", uma vez que deveria antes estar a avistar um "Supra- -Junqueiro" no horizonte…
Também me irritam exclamações interjeccionais e pouco adequadas a um culto de semideuses como "É a hora!", ou como "falta cumprir-se Portugal!" Começo por não perceber o que elas querem dizer, por muito hipotética ou "quinto-imperialmente" patrióticas que sejam. Parecem envolver uma escatologia mais do que duvidosa e muito pouco interessante até do ponto de vista sebástico ou messiânico.
Mas dê-se de barato que esses meus estados de alma interpretativos são questão que só a mim diz respeito. Pessoa exalta os saudosistas e o seu "mergulhar (sem precedentes) nas profundezas da consciência nacional - que os poetas antigos nunca logravam, pois Camões é italiano e Gil Vicente só superficialmente..." E tem ainda esta passagem delirante: "Portugal (…) começa finalmente a sacudir o chumbo da tradição anti-nacionalista representada pelo italianizado Camões."
Enquanto Pessoa ele-mesmo, lá daquelas abismais "profundezas da consciência nacional", vai congeminando estas trapalhadas, Álvaro de Campos faz coro na aversão a Camões: "Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas - tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida."
É a respeito de Camões que Pessoa escreve algumas das mais surpreendentes enormidades da sua prosa crítica. O que ele diz quanto a Os Lusíadas no artigo do Diário de Lisboa que já referi permite-nos perceber o que é que tentou na Mensagem, a começar pela sua concepção de poema épico e pelo que dessa concepção aí se revela.
A sua leitura da obra camoniana mostra apenas uma série de equívocos e um certo tipo de despeito face ao épico pela própria incapacidade de engendrar o Supra-Camões que ele, Pessoa, estava convencido de ser ou de vir a ser.
Noutro lugar, diz também que "Os Lusíadas de Camões têm paixão (o patriotismo), imaginação (o Adamastor, a ilha dos Amores), mas são falhos de pensamento".
A Mensagem é um ciclo poético com algumas belas coisas e com algumas coisas menores, em que talvez não falte a imaginação, mas em que faltam a paixão e o pensamento, isto para recorrer às categorias do próprio Pessoa. Corresponde a um sentido muito pouco consistente da identidade nacional, concebida, mais do que vivida, em termos de um Saudosismo estático e estéril, que foi com toda a probabilidade o mais nacionalmente inabilitante dos movimentos intelectuais da nossa história cultural.
É também uma sequência de figuras hábil e abstractamente elaboradas no vazio onírico de uma História cujo sentido Pessoa, poeticamente, só percebeu em termos fantasmáticos e ultrapassados e cujo desembocar na sua própria actualidade ele concebia, afinal, como correspondente a um desfile de heróis de antigamente resvalando para o "nevoeiro" de agora. Mas Pessoa está "só e sonha saudade" através da História. E, se o nevoeiro significava a decadência (já personificada no Doido cujo retrato terrível se hipostasiava a Portugal em Pátria de Junqueiro), até nisso ele estava a ser influenciado por Camões.
Não resisto a citar Jorge de Sena: "ainda hoje persiste, na meia-tijela intelectual, a fascinação pelo pretensiosismo filosofante de Junqueiro..."
De resto, parece haver um verdadeiro equívoco quando Pessoa vaticina o aparecimento do "Supra-Camões", uma vez que deveria antes estar a avistar um "Supra- -Junqueiro" no horizonte…
Também me irritam exclamações interjeccionais e pouco adequadas a um culto de semideuses como "É a hora!", ou como "falta cumprir-se Portugal!" Começo por não perceber o que elas querem dizer, por muito hipotética ou "quinto-imperialmente" patrióticas que sejam. Parecem envolver uma escatologia mais do que duvidosa e muito pouco interessante até do ponto de vista sebástico ou messiânico.
Mas dê-se de barato que esses meus estados de alma interpretativos são questão que só a mim diz respeito. Pessoa exalta os saudosistas e o seu "mergulhar (sem precedentes) nas profundezas da consciência nacional - que os poetas antigos nunca logravam, pois Camões é italiano e Gil Vicente só superficialmente..." E tem ainda esta passagem delirante: "Portugal (…) começa finalmente a sacudir o chumbo da tradição anti-nacionalista representada pelo italianizado Camões."
Enquanto Pessoa ele-mesmo, lá daquelas abismais "profundezas da consciência nacional", vai congeminando estas trapalhadas, Álvaro de Campos faz coro na aversão a Camões: "Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas - tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida."
É a respeito de Camões que Pessoa escreve algumas das mais surpreendentes enormidades da sua prosa crítica. O que ele diz quanto a Os Lusíadas no artigo do Diário de Lisboa que já referi permite-nos perceber o que é que tentou na Mensagem, a começar pela sua concepção de poema épico e pelo que dessa concepção aí se revela.
A sua leitura da obra camoniana mostra apenas uma série de equívocos e um certo tipo de despeito face ao épico pela própria incapacidade de engendrar o Supra-Camões que ele, Pessoa, estava convencido de ser ou de vir a ser.
Noutro lugar, diz também que "Os Lusíadas de Camões têm paixão (o patriotismo), imaginação (o Adamastor, a ilha dos Amores), mas são falhos de pensamento".
A Mensagem é um ciclo poético com algumas belas coisas e com algumas coisas menores, em que talvez não falte a imaginação, mas em que faltam a paixão e o pensamento, isto para recorrer às categorias do próprio Pessoa. Corresponde a um sentido muito pouco consistente da identidade nacional, concebida, mais do que vivida, em termos de um Saudosismo estático e estéril, que foi com toda a probabilidade o mais nacionalmente inabilitante dos movimentos intelectuais da nossa história cultural.
É também uma sequência de figuras hábil e abstractamente elaboradas no vazio onírico de uma História cujo sentido Pessoa, poeticamente, só percebeu em termos fantasmáticos e ultrapassados e cujo desembocar na sua própria actualidade ele concebia, afinal, como correspondente a um desfile de heróis de antigamente resvalando para o "nevoeiro" de agora. Mas Pessoa está "só e sonha saudade" através da História. E, se o nevoeiro significava a decadência (já personificada no Doido cujo retrato terrível se hipostasiava a Portugal em Pátria de Junqueiro), até nisso ele estava a ser influenciado por Camões.