“A crença é sempre mais forte que o conhecimento.”
ULISSES
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
s.d.
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).- 25.
O primeiro verso (e, no fundo, toda a primeira estrofe) parece não estar relacionado com o título. Na realidade, correspondendo o título a um antropónimo, poderia esperar-se que o texto começasse por aludir à pessoa ou personagem designada. Em lugar disso, o primeiro verso assume um caráter aforístico. A interpretação global do texto permitirá confirmar que a referência a Ulisses assume um carácter instrumental, sendo o mito o verdadeiro tema do texto. Seja como for, não deixa de ser interessante notar que o primeiro nome próprio é o de alguém que veio do Oriente (“De Oriente a Ocidente”).
O texto começa com um paradoxo recorrente em Pessoa, o nada que corresponde a tudo, servindo para caracterizar o mito. Por sua vez, este paradoxo inicial corresponde à enunciação de uma tese. A partir deste momento, o poeta passará a explicar a tese, assumindo o poema a estrutura interna de um texto argumentativo.
O primeiro exemplo apresentado está contido nos últimos quatro versos da primeira estrofe e é também ele paradoxal: há um elemento da realidade física (o sol) que é considerado pelo poeta um mito. Para que saibamos que o poeta se está a referir, efectivamente, ao sol físico, temos o uso do demonstrativo “o mesmo”. Como pode o sol ser um mito? O travessão antecipa o esclarecimento: o sol é o próprio Cristo, o “corpo morto de Deus” (Jesus, Deus feito homem, morto para salvação dos homens) “Vivo e desnudo” (o primeiro adjectivo, num jogo oximórico com “morto”, acaba por constituir uma referência à ressurreição e o segundo parte da inconografia cristã da crucificação). Assim, o que interessa não é o sol enquanto realidade física evidente, mas no que representa para o crente.
Esta referência ao sol como simbolizando Jesus faz parte do imaginário cristão, o que, aliás, está de acordo com a escolha de 25 de Dezembro, data da festa pagã do solstício de Inverno, como data oficial do nascimento de Cristo. A propósito das relações entre a figura de Jesus e o Sol, pode, ainda, ser útil atentar na seguinte citação retirada do Dictionnaire des Symboles (edição portuguesa da Teorema), na entrada “Soleil”: “le soleil est l’emblème [...] du Christ, dont les douze rayons sont les douze apôtres: il est appelé Sol justitiae (Soleil de justice), et aussi Sol invictus (Soleil invincible); Jésus nous apparaît comme un soleil qui rayonne la justice, écrit Hésyechus de Batos, com’est-à-dire comme le soleil spirituel ou le coeur do monde. (...). Le chrisme, momogramme du Christ, rappele une roue solaire.”
Estando aceite o enunciado contido na primeira estrofe, tornar-se-á mais fácil aceitar o próximo argumento. A segunda estrofe refere-se, agora sim, a Ulisses. A combinação dos deícticos é decisiva para contrariar a ambiguidade que se poderia instaurar: na realidade, o pronome demonstrativo inicial poderia parecer uma referência ainda a Cristo, mas o advérbio de lugar "aqui" (associado ao verbo “aportar”) garante que é a Ulisses que o poeta agora se refere. O advérbio refere-se, naturalmente, a Lisboa, de acordo com a lenda que afirma que o herói grego teria passado pela foz do Tejo durante a sua odisseia.
O poeta começa por reconhecer que essa ocorrência não tem fundamento histórico, ideia afirmada e repisada: “não ser”, “Sem existir” e “não ter vindo”. Seguidamente, é criada uma relação de causalidade entre essa não existência e a criação de Portugal. Ulisses criou Portugal por não ter vindo, por ser um mito, pela simples razão de que os portugueses acreditam nisso. A utilização da perifrástica “Foi... existindo” indica que a criação do mito foi um processo. Por outro lado, a primeira pessoa do plural chama a atenção para uma entidade colectiva integrada pelo poeta, os portugueses, evidentemente.
A terceira estrofe corresponde à síntese e à conclusão. O poeta sai do território dos exemplos e generaliza, contrapondo “lenda” a “realidade”, colocando esta na dependência da primeira. A propósito, atente-se no uso do verbo ‘fecundar’: é a lenda que dá vida à realidade. Trata-se, aliás, de uma metáfora poderosíssima, como se a própria realidade só nascesse da lenda. Embora não se possa considerar, em rigor, que mito e lenda sejam sinónimos, penso que o texto acaba por criar uma equivalência entre ambos os termos.
A expressão “Em baixo” antecipa uma desvalorização: o próprio valor da vida é posto em causa. Por um lado, numa afirmação matematicamente inútil, a vida é metade do vazio, numa hiperbolização desse mesmo vazio; por outro, a vida é, afinal, menos importante que o mito, entidade imortal.
Em conclusão, este texto serve para demonstrar não só o funcionamento do mito, mas, mais do que isso, o modo como o mito influencia a realidade. O entendimento cabal deste texto não se esgota na sua análise, expandindo o seu significado no contexto geral da obra, em conjugação com outros poemas.
meu pinto tem firmoze e é pequeno o que eu faço ?
ResponderEliminarGosto muito das analises que faz...
ResponderEliminarAjudam me bastante a ver com clareza o que outrora nao via..
Continue assim!
Obrigado/a :)
Aprecio muito o seu trabalho, estas análises são fantásticas.
ResponderEliminarParabéns! E muito Obrigado
este trabalho ajudou me não só a fazer uma apresentação como tambem fiquei a perceber com clareza este poema , obrigada continuee
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